segunda-feira, 1 de junho de 2020

Viver a Vida


Sim. É isso que devemos fazer. É isso que as pessoas recomendam umas às outras e, principalmente, quando, por alguma razão, a vida fica inesperadamente em risco. E nos últimos (quase) 3 meses é este o discurso do mundo. Em todas as línguas, não diferenciando culturas, ou topografias.

Pela primeira vez, neste século, vivemos com um “denominador comum” do qual só podemos fugir pela negação, que implica, no limite, a alucinação de um (outro) mundo e construção delirante de um (outro) planeta. Mundo enquanto lugar para viver e Planeta, enquanto lugar para habitar.

Sublinho as ideias de “Mundo” (vivido) e “Planeta” (habitado) por sentir que ambas as formas de se/estar “vivo”, estão, mais do que nunca, ameaçadas. A pandemia surge num momento em que as alterações climáticas já obrigavam a pensar (no planeta). Mas era um tema mais facilmente “disfarçável”... Junte-se ainda o capitalismo, irresponsável, máquina trituradora, sendo que este nunca foi necessário disfarçar, pois que é assim que o mundo se move (ou não é?). São temas distintos mas que condensam e “sobredeterminam” o presente.

A pandemia levou às transformações que todos sabemos, nos últimos meses, porém, não creio que pela consciência dos riscos de se acabar com o mundo, já sobejamente conhecidos pelas alterações climáticas e pelos extremos do capitalismo, mas sim pelo medo. Foram pois, razões (interesses) humanas que determinaram a redução da actividade económica, bem como, o foco nesta possibilidade. Talvez só o medo de cada indivíduo de ser infectado (pois como bem diz o povo português: quem tem cu, tem medo), tenha levado às transformações que temos vindo a testemunhar, parecendo assim, esta ser apenas uma fase, após a qual, tudo voltará “ao normal”. Não obstante, os exemplos observados nesta “fase” pandémica, demonstram como o planeta pode, de facto, regenerar (abrindo também a possibilidade de regenerar o mundo).

Será, então, pela conjugação de um planeta onde se possa habitar com um mundo onde se goste de viver, que a vida pode ser vivida. E isto só pode ser válido numa compreensão comum, tanto para mim (indivíduo) como para os outros (sociedade). As restrições impostas pela pandemia têm como princípio base “protege-te para proteger os outros, que por sua vez, te protegerão a ti” (e note-se que falamos de restrições que não põem em causa “viver a vida”, pois aí estaríamos a falar de outro nível de “confinamentos” como o encarceramento violento, a tortura, a doença, a permanência  num campo de refugiados, etc…). Terão maior dificuldade em compreender isto aqueles que estão habituados a “agir por sua conta”.

Quando penso nas coisas que contribuem para que a minha vida seja digna de ser vivida, imediatamente associo um conjunto de coisas que implicam as vidas de outros, cujas vidas, se não estiverem “boas”, tornam a minha pior. Assim sendo, como posso dissociar a qualidade da minha vida da qualidade e bem estar de outras vidas? Falar da “minha vida”, é falar da vida de outros humanos, animais, sistemas vários e outras diversas redes vitais.

Voltando ao triângulo: pandemia - alterações climáticas - capitalismo, ficam evidentes as fragilidades de um mundo “difícil” como emergente de um planeta “amachucado”. As doenças colocam em causa as políticas de saúde, assentes num sistema de valorização económica, em detrimento da (óbvia?) valorização humana. Veja-se o exemplo clássico do sistema de saúde (?) dos EUA, bem como a abordagem política (económica) desse país (e outros também conhecidos) às necessidades de confinamento durante a pandemia.

Nos cenários onde a intensidade do triângulo está a ser crítica, é onde é mais evidente que os trabalhadores têm de trabalhar para viver. Mas, ironicamente, é o trabalho (transportes, fábricas, armazéns, casas sobreocupadas, contratos precários, remunerações baixas, condições miseráveis…) que os pode matar. Podíamos não ir por aí…

Seguindo o pensamento de Éloi Laurent: “Se voltarmos ao business as usual, o que significa aumentar as nossas economias destruindo o resto da Natureza, então a “recuperação” durará alguns meses antes do próximo desastre provocado pelo Homem. Temos de reinventar a economia, e isso começa por valorizar o mais importante – os seres humanos.” Olha, se calhar devia ser mesmo assim…

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Para sempre, definitivo e nunca mais…


Hoje escrevo sobre um sentimento comum a muita gente, neste momento da história do mundo, e que foi brutalmente intensificado em mim na semana passada: o luto.

Muitas perdas em pouco tempo e todas com significados diferentes. Mecanismos e processos diferentes que foi (está a ser) necessário pôr em movimento. A forma como nos despedimos de um amigo da nossa idade, é diferente da forma como nos despedimos de um pai, e de um avô. E de alguém que representa partes de todas estas figuras (e mais algumas…). Não sei como me despedi de nenhum deles. Lembro-me das últimas vezes que os vi. Achei que estaria mais preparado para a morte de uns do que de outros e percebo hoje que não é possível qualquer preparação.

Aprendi até hoje, com o meu estudo e com o meu trabalho, que o luto é um processo lento, complexo e que tanto pode correr bem como correr mal… Também sei que implica um desinvestimento de “tudo” o que nos liga(va) à pessoa que perdemos e que esse “tudo” (correndo bem) fica livre para ser ligado a outras pessoas/coisas. E que faz bem falar, pensar, sonhar, escrever…

Na semana passada não me pude despedir como gostaria. Restrições derivadas do estado de emergência e agravadas pelos dias de Páscoa. Uma despedida rápida, sem tempo com os amigos que gostariam de ter estado presentes. Curiosamente acabei por sentir que estiveram e compreendi que as coisas que se estudam são mesmo verdadeiras. O conforto nas palavras dos outros, na identificação com dores parecidas daqueles que também passaram por isto e ainda na empatia genuína de todos os outros que “apenas” sentiram comigo. Se temos apoio de “almofadas especiais”, a dor é claramente mais suportável.

A ideia de “nunca mais” é demasiada para a nossa compreensão. É uma “sobrepalavra”, intensa, carregada, excessiva. É da ordem do infinito e da incomensurabilidade. Tão grande que os olhos não a conseguem ver. Tão complexa que o pensamento não a pode elaborar. No entanto os lutos fazem-se… Como? Com tempo, com conversas, com histórias (lembradas, contadas), com pensamentos, com sonhos, com escritas, com pessoas especiais, com encontros A palavra certa parece mesmo ser: com…

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Uma reflexão sobre o presente e uma (não muito) nova dimensão do trabalho psicoterapêutico

Há cerca de 10 anos ouvi, pela primeira vez, o conceito de “psicoterapia à distância”, abrindo uma nova realidade onde terapeuta e paciente comunicavam através do ecrã do computador. Como qualquer novidade que nos retire da “zona de conforto”, desconfiei da eficácia da coisa e, atribuindo pouca ou nenhuma importância ao tema, segui no meu caminho.
Quatro ou cinco anos depois confronto-me com a situação de um paciente (que designarei por Jota), que ao fim de um ano de sessões semanais e numa fase importante do processo, teria de se ausentar para fora do país por um período de 1 ano, por motivos profissionais. Refere-me que irá manter contacto regular com a família e a empresa (em Portugal) por Skype e pergunta-me se é possível seguirmos assim. Propus que fizéssemos uma experiência e, caso a coisa não funcionasse, no limite poderíamos tentar encontrar um colega no outro país, que garantisse a continuidade do processo.
E assim se fez. Não só uma experiência, mas mais uma e outra de tal forma que, após um mês, a “ideia do colega” foi relembrada com ênfase por Jota “nem pensar em procurar um colega seu por aqui!”. Percebi que a relação terapêutica estava construída e era sólida e que esta experiência desconhecida era partilhada por ambos. Ele fora do país, eu fora do setting clássico, no entanto, ambos enquadrados e em comunicação. Jota com um contrato para cumprir com a sua empresa e eu com um contrato para cumprir com ele. Um lugar (meu) que foi ficando cada vez mais confortável, reforçado pela essência da escuta psicanalítica. Apesar da qualidade da imagem, muitas vezes não ser a melhor, o som era essencial e sem dúvida, pude desenvolver uma nova dimensão na minha capacidade escuta.
Depois da “experiência” com Jota tive outras situações idênticas, porém, já não as considerei como experiências. A dimensão da escuta que passei a sentir de uma forma diferente através do caso de Jota, oscilava entre o conforto (orientador para a minha localização no setting) e o desconforto (falhas no áudio, flutuações da qualidade do sinal wi-fi…). Especificidades da comunicação online que, por um lado eram constrangimentos à comunicação, mas por outro apelavam (evidenciavam?) ao aprofundamento de uma dimensão da relação terapêutica onde os inconscientes de ambos (terapeuta e paciente) se entendiam porque estavam, também conectados nesta (suposta?) distância (e é pois, nisto que reside a essência do método psicanalítico - conseguir instalar um código comum entre terapeuta e paciente).
Abril de 2020: Todos nós, humanos, estamos em território desconhecido. Procuramos pontos de referência, tentamos associar semelhanças, evocar memórias e encontrar palavras com as quais possamos elaborar mentalmente o que estes tempos nos fazem sentir. Fomos brutalmente empurrados para fora (e para longe!) das nossas “zonas de conforto”. A resposta de todos os que trabalhamos com “equilíbrios emocionais” está a ser, a meu ver, excelente. Demonstrando, toda a comunidade “psi” uma notável capacidade de adaptação.
Com a tremenda transformação da realidade externa, estranho seria se não estivéssemos a ser capazes de “trans-formar” a realidade interna. Seja esta transformação operada no “mundo” (da rua para casa), seja no próprio setting analítico (do consultório para o ecrã).

terça-feira, 31 de março de 2020


E agora? Agora? Não sei…

Uma das tendências “normais” no ser humano é procurar doses confortáveis de controlo e previsibilidade sobre várias dimensões das nossas vidas. Desde a previsão meteorológica do dia seguinte, à rentabilidade do investimento financeiro a 5 anos. A garantia de que a realidade é controlada e previsível é essencial e vivida com plena satisfação por muitos de nós, sem que para isso tenhamos de exibir características de personalidade obsessivo-compulsiva.

E se a previsibilidade e o controlo ficam mais em risco, é sempre possível criar simulações dessas condições através de mecanismos vários, como rever filmes cujo enredo/final já se conhece ou amealhar embalagens XL de papel higiénico. São meras simulações, mas suficientemente convincentes para que muitos de nós as adoptemos.

Quando se instala um estado de incerteza absoluta como o que vivemos actualmente, não há memórias que nos guiem nem desejos onde nos possamos projectar. Gerar mecanismos de simulação deixa de ser uma estratégia eficaz, perante a imposição “crua” da realidade, e todos os mecanismos de defesa habitualmente funcionais, passam a ser vividos como um ataque à capacidade de pensar.

Assim, a experiência de medo, dúvida constante, ansiedade aguda e outras manifestações de desorganização emocional, tenderão a ser agidas, ou num polo depressivo (que, no limite leva ao desespero) ou num polo maníaco (que tende para esperança messiânica – pensamento delirante/mágico, crenças exotéricas). Em ambos os polos, a capacidade de pensar dá lugar a uma “certeza absoluta”, seja ela da ordem da tragédia ou do milagre (distorção da realidade e da racionalidade/razoabilidade/discernimento).

Relembro um conselho comum, cuja origem desconheço e que diz: quando não sei o que fazer, não faço nada. Assim como um complemento possível para este conselho: em muitas situações, não fazer nada pode ser fazer alguma coisa. Não servindo como “lema de vida”, é verdade em certos momentos…

E neste momento? Fará sentido pensar assim? Com a inquietação vivida pela total perda de controlo e previsibilidade sobre o mundo, há que esperar. E também observar, analisar e confiar (naqueles que investigam e naqueles que tratam).

Sentir a impotência de não poder agir é tão ou mais difícil que aguentar um longo período de “não saber”. No entanto, “andar só por andar” não faz sentido (pobre do caminhante que, perdido na montanha, corre em todas as direcções e não pára para observar e analisar o terreno. Ou cai de exaustão ou precipita-se no abismo escondido).

E quando volta “o mundo a abrir”? Não sei! Quando for mais seguro… e importa chegar a esse tempo mantendo a capacidade de pensar, a vontade de estar com e de sentir os outros, e a responsabilidade de (re)criar e (re)construir os danos. Serenidade interna e energia vital para consumo próprio, troca e doação.